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Desenvolvo este blog para que as colegas possam aproveitar as atividades aqui contidas na sua prática pedagógica diária. Muitas são de minha autoria, outras tantas retirei no Grupo Professores Solidários, Internet e de outras fontes.

Atualmente, aproveito ótimas atividades que colegas postam no grupo "Educando e Aprendendo" que fundei juntamente com Flávia Cárias e Sheila Mendes, para ser mais um veículo de comunicação para quem se dedica à importante Arte de Educar.

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Beijão da Tia Paula

sábado, 26 de março de 2011

O BARALHO DO MENDIGO de Sonia B. Hoffmann - Postado por Iracema Dantas

Porto Alegre, março de 2011.
Ele gostava de sentar em um caixote de madeira que ficava à porta do boteco, perto da faculdade. A  qualquer hora que chegássemos lá, lá estava o Quim e seu baralho. Dizia entender tudo de jogos de cartas e tinha a maior intimidade com os reis, rainhas, valetes e ases. Seus dedos ágeis faziam surgir e desaparecer uma carta com uma rapidez impressionante. E faziam mesmo... com a mesma rapidez que colocava no bolso o dinheirinho dado pela plateia entusiasmada e pela camaradagem estabelecida com alguns estudantes e professores.
 Um dia, dois rapazes novos na faculdade, no auge da excitação da novidade e do desejo em deixar bem claro para que vieram, desafiaram Quim para um jogo de pôquer. O mendigo, muito calmo, olhou para eles e lentamente, com seriedade em sua voz, perguntou se eles tinham consciência do que estavam propondo. A resposta foi um muxoxo, a reação de desdém e a alegação de que ele estava com medo de perder. Para eles, tudo não passava de bravatas de um mendigo ignorante. Quim continuava a observá-los e, aos poucos, seu olhar se entristeceu. Perguntou, então, se os jovens sabiam que estavam roubando? Eles ficaram atônitos, nada compreendendo. Recobrando o ímpeto, um deles chamou Quim de covarde e o ameaçou com uma ação por calúnia e difamação.
 O mendigo não se intimidou, afirmando que eles estavam roubando. Muitos se aproximaram e alguém indagou sobre o quê estavam roubando, pois o jogo nem havia começado. Quim balançou a cabeça e, tranquilamente, declarou que eles roubavam a alegria e a espontaneidade do momento, os sorrisos e o relaxamento dos alunos e dos professores que procuravam aquele bar para se desestressarem e descansarem a mente. Para ele, um jogo de pôquer iria causar tensão, aposta e competição. Quando apenas brincava com o baralho, fazendo seus truques às vezes elaborados, às vezes rudimentares, ele via não somente lábios sorrindo, mas olhos e fisionomias adultas refletindo as lembranças mágicas da infância.
 Os jovens saíram, dando de ombros e considerando que a mendicância havia alterado o pensamento e o juízo do mendigo, pobre coitado, vítima das intempéries, da miséria, da sociedade, da cultura e de tantos outros fatores e variáveis contidas no discurso teórico e acadêmico dos desentendidos da construção humana que consideram abarcar todo o conhecimento humano no primeiro ano do ensino superior. Quem permaneceu no bar, dividiu-se entre o "deixa pra lá" e "que conversa do Quim é esta? Roubo do prazer, da alegria, do relaxamento...".
Fiquei refletindo sobre este acontecimento e entendi que as palavras do mendigo, além de sábias, foram de imensa generosidade. Quem leu o livro O caçador de pipas encontra um diálogo entre Baba Jan e seu filho no qual o pai afirma que existe apenas um pecado: roubar. Qualquer outro é simples mente uma variação do roubo. Ou seja, quando matamos um homem, estamos roubando uma vida, estamos roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos um pai. Quando mentimos, estamos roubandode alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceamos, estamos roubando o direito à justiça.
 Quando desacreditamos na capacidade de superação e discernimento de alguém e o consideramos inviável, roubamos deste alguém a sua liberdade, o seu direito a ser e pensar diferentemente de nós, roubamos dele o seu prazer de viver, de agir, de marcar com os seus passos o caminho da vida, de construir seu grande quebra-cabeça e de enfrentar os desafios.
Na ânsia de demarcarmos nossa posição, nosso poder, nossa condição social, intelectual e financeira roubamos da vida, muitas vezes, a naturalidade do ser e do estar no mundo; sonegamos dela a alegria do encontro desinteressado, usurpamos de nós e dos outros a satisfação de viver sem sustos, preocupações e preconceitos. Para impor nossa vontade, em muitas ocasiões, blefamos e passamos por cima de sentimentos. Nos agarramos de unhas e dentes nas cartas do baralho da vida, dispondo absurdamente nosso jogo com ou sem regras, mas com o máximo cuidado de não deixarmos à mostra as cartas marcadas pelo nascimento e pela morte, pois esta é a prova da nossa finitude.
 Será este o jogo que fazemos com a vida? Façam suas apostas... ou não!

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